O ímpio entregou Jesus

Ao lermos a letra do belo responsório Jesum tradidit, devemos fazê-lo em espírito de oração, pensando não apenas na traição de Judas e na tibieza de Pedro, mas na imensa prevaricação que hoje assistimos. E pedir a Maria Santíssima forças para não pactuarmos com a Revolução, a fim de sermos inteiramente fiéis a Nosso Senhor.

 

Comentarei a música Jesum tradidit, de Victoria(1), cujo texto em latim é o seguinte:
Jesum tradidit impius summis principibus sacerdotum et senioribus populi. Petrus autem sequebatur eum a longe, ut videret finem. Adduxerunt autem eum ad Caipham principem sacerdotum, ubi scribæ et pharisæi convenerant.

Judas causa horror à própria impiedade

Em Português isto quer dizer:

“O ímpio entregou Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo. E Pedro O seguia de longe para ver o fim. Conduziram-No a Caifás, príncipe dos sacerdotes, onde os escribas e fariseus se haviam congregado”.

Está cantada aqui a traição de que Nosso Senhor Jesus Cristo foi objeto da parte de um homem que, merecidamente, é qualificado apenas com esta palavra: “o ímpio”; quer dizer, o ímpio por excelência, em todas as formas, graus e modos possíveis de impiedade. Em todas as abominações de impiedade já perpetradas não se chegou até a impiedade de Judas. Este é o ímpio, de tal maneira que os ímpios estão para ele como os pios estão para os ímpios. Ele causa horror à própria impiedade. Este é Judas.

Para compreendermos esta música, é muito bonito considerar o que o canto gregoriano ou o polifônico visam. Eles têm por objetivo exprimir uma meditação do fiel e da Igreja a respeito do sentido do texto cantado; quer dizer, esta música é profundamente meditada, vivida, sentida.

Um princípio que está subjacente a isto é o seguinte: quando um homem narra algo, no seu timbre de voz ele de algum modo musica aquilo que conta. Quer dizer, comunica uma modulação, uma inflexão de acordo com o que ele sente a respeito daquilo que está narrando e, portanto, faz acompanhar a narração de uma certa musicalização.

Contra Aquele que é perfeito foi feita a pior infâmia

E este tipo de música visa exatamente isto: por meio das inflexões da voz, fazer sentir o que a Igreja pensa a respeito daquela infâmia, o horror que ela tem daquela miséria, e sua adoração transida de veneração e de ternura a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Sacrossanto por excelência, Divino, inefavelmente perfeito, que é objeto daquele crime nefando. Eis o contraste.

Assim, alguém procura modelar de tal maneira sua voz que narra cantando, em vez de narrar falando, tudo quanto sentiu a respeito de cada palavra. Então, cada tom da música é uma manifestação de uma atitude de alma perante o sentido contido naquela palavra. É por esta forma que é bonito acompanhar o canto gregoriano e, sobretudo, o polifônico, que é muito mais modulado.

Neste responsório, cada palavra tem o seu sentido. Em primeiro lugar, fala do ímpio; é um ímpio horroroso. Mas em latim assim se inicia: Jesum tradidit impius, que poderia ser traduzido por “a Jesus o ímpio traiu”. Nesse “a Jesus” o autor põe uma inflexão como quem exclama: “A quem? Coisa incrível: Jesus!” Então o objeto da traição foi Jesus! O que fez esse ímpio? Ele traiu. Ou seja, contra Aquele que é perfeito foi feita a ação infame por excelência, porque a traição é a substância da infâmia.

Quem fez isso? O ímpio. De que maneira? Entregando Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo, isto é, aos seus piores inimigos.

A atitude de Pedro…

Ao Santíssimo foi feita a pior das coisas pelo pior dos homens, entregando-O aos seus piores inimigos. É uma ação que consterna e, por causa disso, a música tem uma espécie de consternação em que não se nota tanto o ódio a Judas, quanto uma espécie de ternura por aquilo que Jesus sofreu. Ele, nosso Senhor e nosso Deus, teve de passar por isso! Então, é cantado com ternura.

Depois continua e é outro horror: o príncipe dos seus discípulos, o príncipe do novo sacerdócio o que estava fazendo? Acompanhava-O de longe, medroso, incapaz de ter a resolução verdadeira de se associar ao Mestre.

O cântico diz: “E Pedro O seguia de longe, para ver o fim.” Nota-se que nem era um movimento de pura adoração. Tinha algo de amor, embora o amor do poltrão, mas com grande curiosidade para ver no que iam dar as coisas.

Nossa Senhora e as santas mulheres seguiram a Nosso Senhor para ver no que daria? Muito mais do que isso, foi para estar ao lado d’Ele, sofrer com Ele, participar do opróbrio que Ele teve.

Eis, portanto, outra aflição para Nosso Senhor. Enquanto Ele era traído por um apóstolo, o Príncipe dos Apóstolos tomava essa atitude… Era a desintegração da obra d’Ele. Vejam quanta razão para consternação e para o tom tão triste dessa melodia.

Jesus foi tratado como celerado pelos celerados

A letra continua: “Conduziram-No a Caifás, príncipe dos sacerdotes, onde os escribas e os fariseus se haviam congregado”.

Jesus teve que passar por esta humilhação horrorosa: comparecer como réu perante seus piores e mais vigorosos adversários, e aí ouvir desaforos, receber maus tratos, como um celerado. Ele, que era a própria Perfeição, foi tratado como um celerado pelos celerados. E o pior: celerados revestidos do poder sagrado, pois o poder da Sinagoga vinha do próprio Deus que Se deixava julgar pela Sinagoga.

A seguir, como que impressionado pela mais triste das ideias, o cântico volta à afirmação: “E Pedro O seguia de longe para ver o fim”. Como a dizer: “Veja só… Pedro, hein!” Depois de falar da Sinagoga, da traição, do ímpio, a única dor que se repete é esta: “Pedro O seguia de longe para ver o fim…” E com isso termina a canção enternecida.

É muito bonito acompanhar o texto latino e ouvir o tom, a inflexão de voz com que é cantado, para compreender o modo pelo qual cada frase e, às vezes, cada palavra musicada exprime uma dor, um pensamento anexo ou conexo com o fato narrado.

Isso corresponde a um verdadeiro reviver das disposições que deveríamos ter. Minha alma revive tudo isso? Tenho em mim todas as dores que gemem neste canto? Todas as tristezas que pranteiam nesta música, eu as revivo em cada palavra?

Que Nossa Senhora aceite a minha dor, que Ela a apresente a Nosso Senhor — purificada por Ela, sem cujo intermédio nada é digno de ser apresentado a Ele — como uma expressão da minha tristeza, pelo que se passou naquele tempo.

Devemos, pois, ler isso como quem lê um fato análogo a um acontecimento contemporâneo, pensar nessa imensa prevaricação que assistimos, para que não sejamos como um “Pedro” qualquer, que de longe anda para ver no que dá, mas sejamos como um apóstolo fiel junto a Nossa Senhora aos pés da Cruz, chorando, participando de toda a tormenta, a fim de que sobre nós caia o Sangue redentor que de fato salva os inocentes, salva aqueles que não pactuaram nem com o deicídio, nem com a Revolução, nem com a traição. Este é o pensamento com que nós precisamos acompanhar esse cântico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/4/1967)

1) Tomás Luís de Victoria, compositor sacro espanhol (*1548 –
†1611).

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