Dr. Plinio possuía, desde tenra infância, um senso do maravilhoso tão excelente que, vendo um vasinho colorido, imaginava uma catedral, as ruas e casas de uma cidade feitas com o mesmo material, com as mesmas cores e luminosidades. Muito mais sensível às cores que às formas, ele cogitava a respeito de universos possíveis dos quais aquele vasinho era uma amostra.
Gostaria de analisar um objeto que, em minha infância, serviu-me para muitas cogitações na linha do senso do maravilhoso.
Trata-se de um pequeno vaso que, de si, não tem nada de extraordinário, nem é de grande valor comercial. Porém, tem isso de próprio e que me foi muito favorável: ele visa, em vários pormenores, imitar e reunir pedaços de estilos que, sob alguns aspectos, apontam para o admirável.
Seu formato, os desenhos dourados, a base também dourada que, invertida, dá ideia de uma coroa, tudo isso encaminha o espírito para uma ideia de objeto maravilhoso.
Para a criança não é tão importante a questão – que a pessoa se põe depois dos trinta anos, quando começa a maturar errado –: se o objeto tem ou não o maravilhoso para o qual tende. Mas a pergunta que a criança se coloca, ainda que implicitamente, é: Qual o valor do maravilhoso para o qual aponta?
Então, digamos, um vasinho francamente ordinário – não como este que é bom –, mas que apontasse melhor para o maravilhoso, uma criança lhe daria mais valor do que ao bom. Porque a pergunta não é qual o valor venal, nem da pura concepção artística, mas para onde visou, como sendo a primeira qualidade a ser tomada em consideração.
Assim eu via, em menino, este objeto. Notem que meu feitio de espírito é muito mais cromático do que dado às formas. Para mim, mais do que a forma ou a qualidade do material, este vaso é uma gota de cor, na qual se verifica a mistura que me é bem-amada: vermelho e branco. Não assim: uma lista vermelha, uma lista branca, mas são esbranquiçados de vermelho ou uns avermelhados de branco, postos de cá, de lá e de acolá.
A matéria da qual ele é composto tem uma certa transparência a qual permite à luz um certo jogo que se presta muito para a reprodução desse gênero de cor.
Há aqui uma espécie de teoria da mistura das cores que me agrada extremamente. As cores podem misturar-se até um certo ponto onde uma degenera na outra. Então já não é uma mistura, mas uma outra coisa. E o passar por todas as gamas intermediárias dá um valor cromático ideal muito especial.
Aprazia-me considerar como seria um mundo no qual a cor e as luminosidades dominantes fossem essas, onde as pedras das ruas e os tijolos das casas fossem dessa matéria, onde os homens, em consequência, não seriam vermelhos e brancos, mas tivessem um espírito dotado desse jogo de reversibilidades, em que estivesse presente a afirmatividade, mas também houvesse concessões e afabilidades, tendo entre si um trato que eu imaginava nobilíssimo, mas ao mesmo tempo delicadíssimo, todo feito de condescendências recíprocas fantásticas, na linha do bem, de maneira que nada fosse mau, mas tudo aprazível, concessivo, bondoso, um perene sorriso e uma fórmula da perpétua “douceur de vivre”(1).
Seria, propriamente, o relacionamento das pessoas que se estimam por serem diferentes. Não é o relacionamento dos iguais, mas dos diversos que, na diversidade, nesse “ludus”, se completam.
A meu ver, o papel do dourado nessa combinação é lembrar que infinitamente acima paira outra coisa, evocando uma diversa clave de valores.
Imaginem que alguém esborrifasse mil gotinhas douradas em cima disso, por onde o vasinho pudesse tomar um valor venal maior. Para mim, não valorizaria; ainda que fosse de ouro verdadeiro, não lucraria nada. Eu mandava lavar o vasinho porque o dourado se tornaria promíscuo com isso, e faria com que o restante, por assim dizer, se envergonhasse de ser o que é.
Certamente, o artesão que concebeu esse vaso não teve essas ideias explícitas, mas o fato é que ele pôs o dourado fora do tema central. O tema está na parte nacarada. O dourado corresponde aos horizontes para onde a mescla de vermelho e branco aponta, fora do tema, como algo para alcançar.
Transpondo para o jogo das relações humanas, seria mais ou menos como se nas fímbrias desse relacionamento se compreendesse o convívio com Deus como algo de infinitamente mais alto, mais elevado, mais nobre.
Se a grande indústria pudesse e devesse continuar a existir no Reino de Maria, ela poderia e deveria ser utilizada para finalidades superiores à mera produção quantitativa. Poder-se-ia compreender uma grande indústria que fabricasse uma catedral desse material e a colocasse num panorama estudado para combinar com isso.
O fato é que o vitral se fez sem a grande indústria. E nós poderíamos imaginar, com a evolução da indústria dos vitrais, igrejas todas feitas de vidro. De maneira que seria possível ir longe.
Ademais, golpeado com jeito, esse material emite um som bonito. Imaginem uma igreja que seja o sino de si mesma, onde o toque não se dá no campanário, mas na parede da própria torre! Torres que vibram elas próprias como se fossem badalos postos no ar, de maneira a fazer corresponder em som a cor contemplada pelo olhar.
É preciso dizer que fiquei com inúmeros mundos assim possíveis inacabados na mente. Sobretudo cores que eu vi de cá, de lá, de acolá, e que davam margem a imaginar universos possíveis dos quais esse vasinho era uma amostra. Creio que a matriz da inspiração artística é essa.
Um perigo contra o qual é necessário precaver-se: um mundo vivido assim é tal que não se compreenderia dentro dele a dor e nem sequer a prova. Quer dizer, se imaginássemos um mundo de criaturas assim e que Deus resolveu impor a prova para elas, teríamos um suspense como se víssemos o Criador traindo a sua própria obra. Há uma dificuldade em instalar dentro disso a ideia de prova como, por exemplo, em compreender que Deus tenha permitido a entrada da serpente no Paraíso.
O mais interessante é que só depois de ter passado pela prova compreendemos que tudo isso só toma sua perfeição para quem passou pela prova. Somente quando isso recebeu a trombada do oposto e se afirmou, é que propriamente justificou a sua existência.
Donde poderia vir uma objeção: “Então o mal é necessário?”
Não, o mal não é necessário, mas a prova é. Essas maravilhas devem existir em ordem de batalha contra o que as quer destruir. É nesta postura de ordem de batalha que elas adquirem uma espécie de plenitude de consistência que lhes dá força e dignidade.
Entra, então, um aspecto que à primeira vista não se imaginaria: um cavaleiro cuja armadura fosse feita deste material, mas inquebrantável, trazendo o próprio símbolo da delicadeza e do feérico na batalha mais feroz.
Na “Chanson de Roland”, as despedidas entre Olivier e Roland dão ideia disso. Os dois iam morrer, encontravam-se numa situação em que estavam liquidados. Entretanto, a ternura com a qual ambos se tratam é enorme.
Ouvi dizer, não sei se é verdade, que hoje em dia se tiram fotografias por onde se percebe a cor de certos corpos celestes, nos quais se vê reinar um colorido diferente do existente aqui na Terra.
Poder-se-ia imaginar um mundo para o qual o colorido desse vasinho fosse como a luz do dia para nós, onde todas as pessoas se tratassem como o vermelho e o branco se “tratam” aqui, e que no interior de cada pessoa – não só fisicamente, mas moralmente – a luz brincasse como brinca neste objeto.
Essas pessoas se compreenderiam e teriam uma espécie de avidez de se entenderem, uma necessidade de mútuo entendimento cordial superabundante, por onde se uniriam umas às outras numa perpétua troca de alegria com a “surpresa”, na consideração de que a outra existe.
De maneira tal que indo à rua não se encontraria uma multidão de anônimos, mas de boas surpresas: “Oh, existe também este, aquele…!” As pessoas, sem se conhecerem, parariam, se saudariam e se alegrariam neste diapasão. E haveria, por assim dizer, um perpétuo sorriso de encantamento, um perene cântico e uma espécie de perpétua dança das pessoas se encontrando, se falando. O Céu deve ser assim.
A questão é que existe um mundo de outras coisas que se prestam a considerações como estas. O objeto aqui analisado é uma gotícula que ocupou, nas minhas cogitações de criança, um pequeno espaço. Os jades, as porcelanas chinesas, os cristais da Boêmia, os esmaltes, os ônix, as mil coisas preciosas que há, exprimem uma ordem natural, filosófica, quiçá metafísica. Acenam para uma superior natureza, mas estão inteiramente dentro da nossa ordem natural. O sobrenatural está fora e acima. Não é inimigo; ao contrário, é amigo, bafeja, abençoa, mas se encontra diretamente acima.
Para considerar como isso se instalaria na ordem sobrenatural, teríamos que imaginar como um objeto desses caberia na gruta de Belém, na noite de Natal.
Poder-se-ia fazer uma distinção entre a natureza do Céu empíreo, que ainda está na linha do natural, e a do metafísico. Aquilo que em nós é puramente espiritual enquanto contempla o que nos outros é também espírito; e, depois, o que em nós é espírito e contempla a Deus, portanto a essência divina, infinitamente acima de nós. São coisas inteiramente diferentes.
Mas tudo isso, que seria uma contemplação árdua, difícil, pode-se resumir e acompanhar muito melhor, considerando a união das naturezas humana e divina em Nosso Senhor Jesus Cristo. N’Ele encontramos todas as belezas e excelências possíveis da ordem natural transpostas para a clave sobrenatural.
Assim, poderíamos imaginar as operações da graça pairando sobre objetos como esse. Por exemplo, os vitrais da Sainte-Chapelle são naturais, e aquelas cores são produzidas pela natureza, assim como as desse vaso. Mas quem vê aqueles vitrais recebe uma graça por onde percebe um certo sobrenatural análogo àquela natureza.
O sobrenatural tem certo modo de assumir as coisas por onde estas, sem deixarem de ser elas próprias, elevam-se tanto que mudam de aspecto.
Por exemplo, a imagem de Nossa Senhora do Miracolo tem joias até na cintura. Essas joias são pedras naturais, mas as graças que se recebem na Igreja do Miracolo são tais, que brilham por assim dizer também a respeito dessas joias. Essas joias naturais tomam um luzimento que para nós enriquece o que de sobrenatural a imagem quer dizer.
Em termos mais precisos, a graça se serve também da pedra para comunicar algo a nós. Portanto, no presepe, ela poderia servir-se também deste vasinho para – por um processo análogo, difícil de imaginar – manifestar alguma coisa de si mesma a nós.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1983)
1) Do francês: doçura de viver.
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