Analisando duas músicas natalinas francesas, Dr. Plinio mostra como cada uma delas deveria refletir mais profundamente a grandeza sobrenatural do Natal. Em meio a muita delicadeza, há uma espécie de carência de sacralidade
Uma das principais características da música francesa, ao menos na medida em que a conheço, é que ela exprime de preferência um certo tipo de sentimento humano, ao qual corresponde o adjetivo francês “salonnier”, de salão.
O clássico salão francês é habitualmente de pé direito alto, teto com estuque, tendo algumas muito ligeiras pinturas de dourado realçando algum movimento do estuque. Os móveis são de um estilo que pode ir de Luís XIII até Luís XVI, feitos de madeiras preciosas, com incrustações em bronze finamente trabalhadas, às vezes com tampo de mármore, alabastro ou outra pedra também de grande valor, tendo em cima bibelôs, figurinhas de porcelana, de prata, de ouro, de cristal, postas ali para entreter os homens, e jarras de flores muito bonitas. As cadeiras no mesmo gênero, com tecidos de uma delicadeza magnífica, com cores leves: cor-de-rosa muito pálido, azul de aurora, verde-água. Tudo dentro de uma atmosfera de sorriso, criando o clima da cortesia francesa.
A língua francesa está para essa cortesia como a partitura está para a música. Há uma polidez francesa que é o modo de ser amável, de se tornar agradável por aquilo que se diz, de modo ultra-pensado, mas muito leve. De maneira que a coisa pesadona, muito raciocinada que vem como um carretão não cabe no estilo francês, o qual é leve, distinto, e procura dar a impressão de que o pensamento nasceu naquele momento, não como um produto de uma elaboração cerebral árdua, porque tudo quanto é árduo se procura esquecer no salão francês, onde as flores e os cristais dão o tom; mas causando a impressão de que a ideia surgiu com toda a facilidade de um espírito genial, e fez todo mundo sorrir.
O sorriso de admiração, de aplauso, de simpatia, de proteção, todas as gamas do sorriso florescem no salão francês. As reverências são profundas, calculadas segundo a categoria da pessoa que faz e da que recebe a reverência. Há toda uma aritmética social colocada nisso, mas que se disfarça com ditos ligeiros. Isso faz com que se tenha a impressão de que tudo isso é suave, espontâneo, e se vive uma vida quase irreal.
Essa suavidade, produto quintessenciado de uma civilização ao qual me refiro com simpatia, mais ainda, com uma admiração, é, entretanto, um requinte unilateral. Porque não é justo, não é bom, não é real que toda a vida social de um povo como o francês reproduza apenas o leve e o elegante como se a vida fosse só isso. O salão tem que ser uma imagem da vida, mas o salão francês é a imagem de uma fantasia.
Dada essa introdução, podemos nos perguntar como é o Natal francês, que é um Natal de salão. É uma sociedade de salão que procura colocar-se em presença da gruta de Belém, com o Menino-Deus, Nossa Senhora e São José, pessoas de estirpe principesca, mas ao mesmo tempo simples, e até muito simples, de um lado; e de outro lado o que há de menos próprio a um salão: bois e vacas que com o seu bafo vão esquentando um Menino que sente frio, deitado na palha, dentro de uma manjedoura! Não era assim que se representavam o rei e a rainha, olhando para o delfim que tinha nascido. Então, como o francês imagina os sentimentos do homem de salão diante desse “Presepe”?
Dessa vida de salão floresceu o que em francês se chama la “bergerie”. “Berger” é o pastor. A “bergerie” é um conjunto de comentários, apresentações, toda uma concepção do mundo pastoril. Então, o pastorzinho, árvores lindas com frutinhas vermelhas, um cordeirinho no qual se poderia amarrar uma fitinha cor-de-rosa ou azul-claro, a pastorinha que caminha ao lado dele usando um bastão grande, o sininho que toca quando o cordeirinho anda… Enfim, uma representação mimosa baseada na vida de campo, mas como esta vida não é na realidade. Porque o campo tem besouros, buracos no chão, bichos mortos, coisas fétidas. O campo é o campo, ainda que seja francês.
Esse enlevo pela vida campestre era um modo de os franceses se desafogarem do excessivamente quintessenciado, civilizado, procurando recorrer à simplicidade extrema e até exagerada para mostrar os lados encantadores da candura pastoril.
Dentro dessa concepção, a Rainha Maria Antonieta chegou a construir um “hameau”, um casario, menor até que uma aldeia, no “Petit Trianon”, que era uma espécie de ambiente campestre organizado por ela nas dependências do parque de Versailles. Ali ela, as duquesas e as princesas apareciam vestidas de pastorinhas, mas com tecidos de seda. Então, pastoras de conto de fadas, com uns carneirinhos que antes tinham sido lavados, perfumados, arranjados do modo mais perfeito, e que podiam pôr uma pata fora da etiqueta. Canções pastoris tocadas por grandes orquestras, etc.
Eu imagino que é nessa delicadeza lírica da canção pastoril que é concebido o Natal francês.
Agora, vamos analisar algumas músicas natalinas francesas.
Nasceu o Divino Menino
Il est né le Divin Enfant
Jouez hautbois, résonez musettes
Il est né le Divin Enfant
Chantons tous son avènement
Nasceu o Divino Menino
Tocai oboés, ressoai gaitas
Nasceu o Divino Menino
Cantemos todos o seu advento.
O termo “avènement” tem aqui uma particularidade: é que se diz também de um rei que sobe ao trono, o avènement du roi.
Depuis plus de quatre mille ans
Nous le promettaient les prophètes
Depuis plus de quatre mille ans
Nous attendions cet heureux temps
Desde há quatro mil anos
Os profetas nos prometiam
Desde há quatro mil anos
Nós esperávamos esse tempo feliz
É o Messias que devia vir.
Ah! Qu’il est beau, qu’il est charmant!
Ah! Que ses grâces sont parfaites!
Ah! Qu’il est beau, qu’il est charmant!
Qu’il est doux ce Divin Enfant!
Ah, como é belo, como é encantador!
O termo “encantador” não traduz inteiramente o que a palavra “charmant” significa em francês. É preciso ter visto o encanto da coisa francesa para compreender o que é charme.
Ah, como suas graças são perfeitas!
Graça, o que é aqui? Não é a graça sobrenatural, mas como é perfeito aquilo que Ele tem de gracioso. A sua graciosidade é perfeita. Vejam, portanto, que é o Menino de salão.
Ah, como é belo, como é encantador!
Como é doce esse Menino Divino!
Está descrito o Menino: Ele é belo, encantador, doce. É o Menino-Deus. Realmente convém ao Menino-Deus isso, mas é uma focalização toda especial.
Une étable est son logement
Un peu de paille est sa couchette
Une étable est son logement
Pour un Dieu quel abaissement!
Um estábulo é seu alojamento
Um pouco de palha é seu leito
Um estábulo é seu alojamento
Para um Deus, que rebaixamento!
Partez grands rois de l’Orient
Venez vous unir à nos fêtes
Partez grands rois de l’Orient
Venez adorez cet Enfant
Parti, ó grandes reis do Oriente
Vinde unir-vos à nossa festa!
Parti, ó grandes reis do Oriente
Vinde adorar essa Criança!
A ideia subjacente é que, apesar da palha, etc., os grandes reis virão adorá-Lo, introduzindo uma certa atmosfera de salão no estábulo.
O Jésus, o Roi tout puissant
Tout petit enfant que vous êtes
O Jésus, o Roi tout puissant
Régnez sur nous entièrement
Ó Jesus, ó Rei todo-poderoso
Tão pequenino que sois
O contraste é intencional: apesar de ser uma criança tão pequenininha, é o Rei onipotente.
Ó Jesus, ó Rei todo-poderoso
Reinai sobre nós inteiramente!
Então, é o ato de submissão do salão ao Rei que pode tudo, apesar de ser uma Criança tão pequena deitada na palha.
Notem como a procura do gracioso está presente nessa música que, tocada de um modo um pouco mais saltitante, serviria para acompanhar um desfile de nobres vestidos à moda daquele tempo, cada um estendia a mão a uma dama da nobreza e ela tocava-a apenas com as pontas dos dedos, mantendo distância entre ambos, andando com leveza, usando sapatos de verniz com saltos vermelhos. Os nobres usavam saltos vermelhos, era o distintivo da nobreza, “culotte” e coletes de seda com botões de matéria preciosa, paletós com veludos inestimáveis e brocados.
Toda a música transcorre num tom que conviria mais para um festejo de distração da nobreza do que uma festa propriamente de piedade. Quer dizer, no meio de toda essa delicadeza há uma espécie de carência de sacralidade. E eu me recriminaria se não acentuasse isso com toda a força necessária. Por mais que tudo isso seja “charmant” – e realmente o é – vê-se a serpente da Revolução Francesa enroscada aí. Uma apreciação inexorável dessa canção levaria a isso.
A certa altura a canção toma ares de algo que é cantado por meninos na presença do Deus-Menino, ou por adultos para falar com o Divino Infante. Mas há uma nota de infância, de inocência, mais uma vez “charmante”, na qual, porém, a verdadeira piedade católica do cantochão não está presente.
Esse charme todo não teria podido nascer senão de uma civilização cristã. Mas o charme não basta para a sacralidade. Esse é o grande erro presente nessa canção. Porque o Natal é uma festa suma, essencial e culminantemente religiosa. O recolhimento, a ternura, a delicadeza e tudo quanto encontramos no cantochão – e mesmo no polifônico mais próximo do cantochão – não está presente nessa música. Está presente o salão.
Poderia apertar mais a crítica, mas não o faço porque essa delicadeza toda é aristocrática e, como tal, odiada pelos revolucionários. Portanto, não quero pô-la pura e simplesmente no pelourinho sem lhe ter manifestado muita admiração.
Consideremos outro cântico cuja letra diz:
Les anges dans nos campagnes
Ont entonné l’hymne des cieux
Et l’écho de nos montagnes
Redit ce chant mélodieux
Gloria in excelsis Deo
Bergers, pour qui cette fête?
Quel est l’objet de tous ces chants?
Quel vainqueur, quelle conquête
Mérite ces chœurs triomphants?
Gloria in excelsis Deo
Ils annoncent la naissance
Du Saint Rédempteur d’Israël
Et pleins de reconnaissance
Chantants ce jour solennel
Gloria in excelsis Deo
Os Anjos em nossos campos
Entoaram um hino dos Céus
O eco de nossas montanhas
Repercute esse canto melódico
Glória a Deus nas alturas
Pastores, para quem é essa festa?
Qual é o objeto de todos esses cantos?
Que vencedor, que conquista
Merecem esses coros triunfantes?
Glória a Deus nas alturas
Eles anunciam o nascimento
Do Santo Redentor de Israel
E cheios de reconhecimento
Cantam nesse dia solene
Glória a Deus nas alturas
O Natal é uma festa sobrenatural
Essa canção é sensivelmente menos frívola que a anterior. Ela procura, como aquela, ressaltar a alegria e o esplendor da noite de Natal. Em qualquer cântico natalino esse é um elemento indispensável. Mas essa música busca essa alegria e esse esplendor na participação dos Anjos. Quem compôs a canção desviou a atenção do público, que está ajoelhado diante do Presepe e que deve aplaudir a canção, para o coro dos Anjos no Céu. O esplendor é, sobretudo, o dos Anjos, como algo feito para glorificar o Menino.
Entretanto, essa glorificação é dada menos pelos homens do que pelos Anjos. Os homens procuram interpretar e reproduzir o que os espíritos celestes cantaram em honra ao Menino. De maneira que tem mais força e sacralidade do que a canção anterior, na qual são homens de salão que dizem: “Ah, que criança engraçadinha…”
Assim mesmo, a meu ver, não tem todo aquele grau de sacralidade e sobrenaturalidade indispensável à música sacra, ou mesmo à música religiosa popular, que tem o seu papel, mas precisa ser mais sacral, fazer sentir mais o sobrenatural. Aqui se sente ainda a natureza cantada no que ela tem de mais belo, porém isso não esgota a beleza do Natal. O Natal é uma festa sobrenatural.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/1/1989)
Revista Dr Plinio 261 (Dezembro de 2019)
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